quarta-feira, 25 de junho de 2014

O Supremo e a repercussão geral no caso da terceirização de atividade-fim de empresas de telecomunicações: o que está em jogo?


Vitor Filgueiras * 
Renata Queiroz Dutra** 

INTRODUÇÃO 
O Supremo Tribunal Federal tem assumido uma postura de protagonismo em  relação ao julgamento de uma questão fundamental concernente à regulação das relações de trabalho no Brasil hoje: a terceirização. 

Em 2011, o STF, no julgamento relativamente rápido[1] da ADC 16/DF, disciplinou a responsabilidade da Administração Pública pela terceirização de serviços contratados nos termos da Lei nº 8.666/93. O fez por meio de análise apartada dos valores sociais do trabalho, que culminou por isentar de responsabilidade, como regra, os entes públicos tomadores de serviços, estabelecendo que a quitação dos haveres trabalhistas deve ser resolvida, prioritariamente, entre os trabalhadores terceirizados e as pessoas jurídicas interpostas (empresas prestadoras de serviços). 

Recentemente, em decisão que alarmou o movimento sindical, os agentes de regulação institucional e os estudiosos do mundo do trabalho, a Corte Constitucional reconheceu a repercussão geral da licitude da terceirização de atividade-fim, à luz da liberdade de contratar inserta no art. 5º, II, da Constituição Federal (ARE 713.211/MG, relatoria do Ministro Luiz Fux). A possibilidade de romper com o até então estável entendimento do Tribunal Superior do Trabalho sobre a matéria, consolidado nos termos da Súmula nº 331 daquele Tribunal trabalhista, aponta para uma abertura para a terceirização maior até do que a intentada pelo patronato pela via legislativa (conferir, por exemplo, os termos do PL 4330). 

O setor de telecomunicações não ficou de fora dessa investida empresarial sobre a Suprema Corte: foi reconhecida no plenário virtual a Repercussão Geral nº 739[2], no bojo ARE 791932, de relatoria do Min. Teori Zavaski, por 9 dos 11 Ministros do STF. 

Importante observar que dos 9 Ministros que votaram pela repercussão geral, 8 entenderam que havia questão constitucional quanto à matéria. Apenas a Ministra Rosa Weber reconheceu a repercussão geral para pontuar que não havia questão constitucional em relação ao tema. 

Os Ministros entenderam que há repercussão geral na alegação recursal de que, quando o Tribunal Superior do Trabalho reconhece a ilicitude da terceirização de atividade de call center pelas empresas de telecomunicações, deixa de aplicar o art. 94, II, da Lei nº 9.472/97 (Lei Geral de Telecomunicações – LGT), de modo que, ainda que não tenha declarado a inconstitucionalidade desse dispositivo legal, viola a cláusula de reserva de plenário (art. 97 da Constituição Federal [3]) . 

Embora aparente que a questão recursal reveste-se de contornos meramente  formais, que podem dar ensejo a uma mera determinação do Supremo no sentido de que  o TST submeta a questão ao seu Plenário, para sanar o problema do quórum exigido pelo art. 97 da Constituição Federal, é importante ter em mente que, de acordo com a sistemática processual da repercussão geral hoje em vigor, nada impede que, ao decidir a questão processual à qual se atribuiu repercussão geral, o Supremo prossiga no julgamento para enfrentar a questão de mérito relativa à possibilidade ou não de o art. 94, II, da LGT autorizar a terceirização de atividade-fim por parte das empresas de telecomunicações. O fazendo, a Corte atribuiria repercussão geral ao seu entendimento, vinculando todos os demais órgãos do Judiciário e encerrando a possibilidade de recurso extraordinário sobre o tema. 

Assim sendo, a questão adquire relevância para a regulação do trabalho no país:  primeiro, pela exceção que representa em relação à regra geral firmada hoje no  ordenamento, no sentido de que a terceirização de atividade-fim é ilícita, visto que se  caracteriza como intermediação de mão de obra e implica rebaixamento das condições de trabalho [4]. Segundo, pela possibilidade de o Poder Judiciário reconhecer e legitimar a possibilidade de terceirização justamente em um setor em que a estratégia da forma de contratação tem contribuído para provocar a precarização das condições de trabalho e a precariedade das condições de vida dos trabalhadores envolvidos, notadamente no que concerne à sua saúde. 

A pergunta, portanto, consiste em compreender porque excepcionar das  responsabilidades trabalhistas, a partir de uma leitura ampliativa de um diploma  normativo que cuida dos termos da concessão administrativa dos serviços de  telecomunicações (e não da disciplina das relações de trabalho), um setor econômico que, apesar de encontrar-se em franco crescimento, tem sacrificado uma massa de trabalhadoras jovens com uma organização do trabalho que impõe intensidade no  emprego da força de trabalho, assédio subjetivo e condições físicas ofensivas à saúde. E a porta de entrada e elemento essencial desse processo não tem sido outra que não a terceirização, com seu imediato distanciamento do tomador de serviços das responsabilidades pela condição de trabalho oferecida aos trabalhadores e afastamento  do trabalhador das categorias sindicais mais sólidas e representadas pelo sindicato dos empregados das empresas concessionárias dos serviços de telecomunicações. 

A disputa entre capital e trabalho se reproduz nas esferas de regulação e, certamente, os interesses envolvidos nesse conflito pressionam e operam na formação do convencimento dos julgadores do STF a respeito do tema. O trânsito que o lobby das grandes empresas do setor de telecomunicações terá nos bastidores do julgamento é previsível. Resta saber o peso que os trabalhadores envolvidos no processo e a perspectiva de esgotamento de sua saúde poderá ter em contrapartida. 

Para acessar a íntegra do texto, clique aqui.
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*Doutor em Ciências Sociais (UFBA), pós-doutorando em Economia (UNICAMP), Pesquisador de Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (CESIT) da UNICAMP, auditor fiscal do Ministério do Trabalho. 

**Mestre e Doutoranda em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília. Analista Judiciária do Tribunal Superior do Trabalho. 

Ambos os autores integram o grupo de pesquisa “Indicadores de Regulação do Emprego”, sendo o presente texto desenvolvido no curso das atividades do grupo (http://indicadoresderegulacaodoemprego.blogspot.com.br). Agradecemos a Daniel Soeiro Freitas pelo diálogo a respeito das ideias suscitadas no texto, assumindo integral responsabilidade por seu conteúdo. 

[1] Basta observar que a referida ação declaratória de constitucionalidade fora proposta em 2007, ao passo que, por exemplo, a ADI nº 1625, a respeito da denúncia pelo Estado Brasileiro da Convenção nº 158 da OIT, que repele a dispensa imotivada, a qual foi ajuizada em 1997 e ainda encontra-se pendente de conclusão do julgamento. 

[2]  Decisão proferida em sede de recurso extraordinário interposto contra o acórdão proferido pela 1ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho, em voto de relatoria do Ministro Hugo Carlos Scheuermann no processo nº TST-AIRR-27-97.2012.5.03.0019, em que foi confirmada decisão do 3º TRT (Minas Gerais),  que considerou ilícita a terceirização de call center no setor de telecomunicações e reconhece o vínculo empregatício diretamente com a empresa tomadora de serviços. 

[3] Dispõe o art. 97 da Constituição: “Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público".

[4] Dentre os tantos indicadores que demonstram a relação entre terceirização de atividade fim e precarização do trabalho, ver: FILGUEIRAS, Vitor Araújo. Terceirização e trabalho análogo ao escravo: 

sexta-feira, 6 de junho de 2014


Terceirização e trabalho análogo ao escravo: coincidência?

Vitor Araújo Filgueiras[1]


Dois dos fenômenos do chamado mundo do trabalho mais divulgados, pesquisados e debatidos no Brasil nas últimas duas décadas são a terceirização e o trabalho análogo ao escravo.
Esse dois fenômenos estão envoltos em ferrenha disputa no bojo das relações entre capital e trabalho, assim com no conjunto da sociedade, pois constituem, respectivamente, estratégia central no atual perfil predominante de gestão do trabalho e o limite do assalariamento no capitalismo brasileiro.
Não por acaso, a luta tem início na definição dos seus próprios conceitos, em dois níveis: 1- na apreensão de suas naturezas e características enquanto fenômenos sociais; 2- na demarcação dos limites e conteúdos da sua regulação, especialmente pelo Estado, também denominada como definição jurídica.
A forma de apreensão do primeiro condicionará fortemente a tomada de decisões que constitui o segundo. Afinal: o que é trabalho análogo ao escravo? O que é terceirização?
Sendo as normas relações sociais, eles existem na medida em que se impõem em determinados tempo e espaço, por e entre entre determinados agentes, sejam eles objetos ou executantes da regulação (isso vale para portarias, leis, regras, princípios, ou qualquer que seja a designação dada à relação social). Destarte, não existe uma verdade abstrata ou a priori de norma nenhuma, ou a “correta interpretação da norma”. A fronteira da legalidade é aquela que se impõe pelos agentes que disputam a interpretação dos textos (e quaisquer outros instrumentos) e desse modo constituem a regra. Não compreender isso é fetichizar o direito e inserir no plano místico qualquer tentativa de debate[2].
Assim, neste pequeno texto acerca da relação entre terceirização e trabalho análogo ao escravo, não será feito qualquer discurso retórico que aspire prescrever que “isso” ou “aquilo” é legal ou ilegal. Mesmo a análise da legalidade no mundo real, ou seja, das relações concretamente estabelecidas entre os agentes de regulação, não fará parte do escopo do artigo, dentre outras razões, pela conjuntura de sua mutabilidade.
Estamos na iminência de possível inflexão da regulação da terceirização e do trabalho análogo ao escravo no Brasil. Quanto a este último, foi promulgada ontem (05/06/2014) emenda à Constituição que prevê a expropriação de propriedade na qual for flagrada a exploração de trabalhadores nessas condições. Contudo, empregadores urbanos, rurais e suas entidades representativas estão tentando aproveitar essa mudança para regulamentar a emenda alterando o conceito de trabalho análogo ao escravo, restringindo o crime à coerção individual direta e, com isso absolvendo todas as formas de exploração típicas da coerção do mercado de trabalho, que são aquelas próprias do capitalismo[3].
Quanto à terceirização, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu reconhecer repercussão geral à decisão que será tomada em processo sobre o tema[4], que servirá como referência para todas as ações que tramitam atualmente e que venham a subir ao Supremo. Desse modo, servirá como precedente fortíssimo à atuação de todo o Judiciário, demais instituições de regulação do trabalho e, em especial, às empresas.
Em suma, o STF poderá dar enorme contribuição à restrição ou flexibilização das fronteiras efetivamente estabelecidas pelas instituições do Estado, até momento, no tratamento da terceirização.
Neste momento crítico, o objetivo geral deste breve artigo é apresentar algumas características da natureza dos fenômenos a partir da relação entre eles, seja lá qual for a regulamentação que o Estado estabeleça sobre eles.
Assim busca-se contribuir com algumas luzes sobre o que, de fato, são terceirização e trabalho análogo ao escravo, para que se tenha consciência sobre o que se está atuando, seja combatendo, consentindo ou estimulando.
O objetivo específico do artigo é apresentar subsídios à pergunta do seu título: a relação entre trabalho análogo ao escravo e terceirização é contingencial? O principal argumento defendido, com base em uma série de indicadores, é que existe forte relação entre a ocorrência de trabalho análogo ao escravo e a terceirização. Isso porque o trabalho análogo ao escravo no Brasil é limite da relação de emprego, e a terceirização é uma estratégia de gestão do trabalho que objetiva justamente driblar esses limites (seja ele representado por sindicato, direito do trabalho, etc.) impostos ao assalariamento. É essa relação que explica a ampla prevalência de trabalhadores terceirizados entre aqueles submetidos s condições análogas à de escravos.
A análise do texto é baseada no universo dos relatórios de ações de combate ao trabalho análogo ao escravo do Ministério do Trabalho. Trata-se, portanto, da totalidade dos resgates ocorridos no país nos anos investigados, quais sejam: 2010, 2011, 2012 e 2013. Além dos dados agregados, foi observada e incidência da terceirização à luz da condição de formalização dos trabalhadores e por atividade econômica selecionada.




[1] Doutor em Ciências Sociais (UFBA), pós-doutorando em Economia (UNICAMP), Pesquisador de Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (CESIT) da UNICAMP, auditor fiscal do Ministério do Trabalho, integrante do grupo de pesquisa “Indicadores de Regulação do Emprego”, sendo o presente texto desenvolvido no curso das atividades do grupo (http://indicadoresderegulacaodoemprego.blogspot.com.br).
Agradeço às críticas de Dari Krein, Carla Gabrieli, Ilan Fonseca, Renata Dutra. Assumo integralmente a responsabilidade pelo conteúdo e eventuais inconsistências do texto
[2] Uma análise sobre o tema consta no capítulo 3 de FILGUEIRAS, Vitor. Estado e direito do trabalho no Brasil: regulação do emprego entre 1988 e 2008. Salvador, UFBA, 2012. Disponível em: http://indicadoresderegulacaodoemprego.blogspot.com.br

[3] Ver, por exemplo: “Ruralistas tentam descaracterizar o que é trabalho escravo” (obtido em http://www.trabalhoescravo.org.br/noticia/70.), dentre muitas fontes existentes. Sobre a dinâmica de disputa pela regulação, ver: FILGUEIRAS, Vitor. Trabalho análogo ao escravo e o limite da relação de emprego: natureza e disputa na regulação do Estado. Brasiliana – Journal for Brazilian Studies. Vol. 2, n.2, Out. 2013.

[4] O Ministro Luiz Fux deu provimento ao recurso patronal de embargos declaratórios em recurso extraordinário com agravo ARE 713211 MG (STF) -, integralmente acompanhado pelos demais componentes da Turma, para reconhecer repercussão geral ao tema da terceirização de atividade-fim, no dia 1º de abril de 2014. 

segunda-feira, 2 de junho de 2014


Em 2014, o empresariado brasileiro elegeu a Norma Regulamentadora (NR) 12 do Ministério do Trabalho (MTE), que versa sobre segurança do trabalho em máquinas e equipamentos, como uma das suas principais pautas de reivindicações.

A NR 12 (que existe desde 1978) teve sua redação alterada em dezembro de 2010, e tem sido crescentemente criticada pelo patronato nos últimos anos[1], sendo inserida num conjunto de mobilizações capitaneadas pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) e Confederação Nacional da Indústria (CNI)[2].

Há diversos documentos empresariais, reportagens, eventos, entrevistas, com reclamações direcionadas à redação de 2010 da NR 12, por supostos: altos custos para sua adoção, complexidade, abrangência (alegação de incremento de 40 para 340 itens na norma), inviabilização das empresas, risco aos empregos. A demanda mais recorrente das empresas era pela dilação de prazos para aplicação da NR 12[3]. Ano passado chegou a ser ventilada a suspensão da referida norma no Congresso Nacional.

Neste ano, as empresas e seus representantes têm atuado em diversas frentes, como o Ministério do Trabalho (MTE) e a Justiça do Trabalho, para encaminhar seus pleitos concernentes à NR 12. Seu plano atual é sintetizado e radicalizado pela proposta de sustar os efeitos da norma por meio do Legislativo.

Neste são apresentados indicadores que permitem analisar, com amparo em informações e dados empíricos, a procedência das alegações das entidades patronais concernentes à NR 12. Os indicadores também contribuem para apreender as características do tratamento dado à integridade física dos trabalhadores brasileiros por seus empregadores, no que tange à observância de condições mínimas de segurança no maquinário utilizado.

Os principais indicadores foram construídos fundamentalmente a partir de duas bases de informações: o universo das fiscalizações do MTE (por meio do SFIT (Sistema Federal de Inspeção do Trabalho)), desde 1997 até abril de 2014; e a base de dados de Previdência Social, especialmente por meio das Comunicações de Acidentes de Trabalho (CAT) efetuadas pelos empregadores. Os indicadores construídos são cruzados com algumas referências e outras publicações. Além disso, o texto apresenta algumas fontes e informações concernentes à NR 12 deliberadamente omitidas pela ofensiva empresarial.
O TEXTO INTEGRAL PODE SER ACESSADO PELO LINK ABAIXO:




[1] Dentre os muitos exemplos possíveis, apenas para ilustrar, ver documento elaborado pela Confederação Nacional das Indústrias (CNI) no final de 2012, intitulado “101 Propostas para Modernização Trabalhista” (CNI. 101 propostas para modernização trabalhista / Emerson Casali (Coord.) – Brasília: 2012.).
[2] Sobre as ações empresariais, particularmente no que tange à inspeção do trabalho, ver FILGUEIRAS, Vitor. Padrão de atuação da fiscalização do trabalho no Brasil: mudanças e reações. Campinas, 2014. Disponível em http://indicadoresderegulacaodoemprego.blogspot.com.br
[3] Por exemplo, em reunião com o atual e o ex-ministro do trabalho, representante da FIRJAN pediu prorrogação do prazo para cumprimento da NR 12 (Ministro comenta na Firjan NR-12 e terceirização. Durante encontro com presidente da entidade, Manoel Dias ouviu as principais reivindicações do setor. 05/08/2013. http://portal.mte.gov.br/imprensa/ministro-debate-nr-12-e-terceirizacao-com-empresarios-na-firjan/palavrachave/firjan-manoel-dias.htm)