Terceirização
e trabalho análogo ao escravo: coincidência?
Vitor Araújo Filgueiras[1]
Dois dos fenômenos do chamado mundo do
trabalho mais divulgados, pesquisados e debatidos no Brasil nas últimas duas
décadas são a terceirização e o trabalho análogo ao escravo.
Esse dois fenômenos estão envoltos em
ferrenha disputa no bojo das relações entre capital e trabalho, assim com no
conjunto da sociedade, pois constituem, respectivamente, estratégia central no
atual perfil predominante de gestão do trabalho e o limite do assalariamento no
capitalismo brasileiro.
Não por acaso, a luta tem início na definição
dos seus próprios conceitos, em dois níveis: 1- na apreensão de suas naturezas
e características enquanto fenômenos sociais; 2- na demarcação dos limites e
conteúdos da sua regulação, especialmente pelo Estado, também denominada como
definição jurídica.
A forma de apreensão do primeiro
condicionará fortemente a tomada de decisões que constitui o segundo. Afinal: o
que é trabalho análogo ao escravo? O que é terceirização?
Sendo as normas relações sociais, eles
existem na medida em que se impõem em determinados tempo e espaço, por e entre entre
determinados agentes, sejam eles objetos ou executantes da regulação (isso vale
para portarias, leis, regras, princípios, ou qualquer que seja a designação dada
à relação social). Destarte, não existe uma verdade abstrata ou a priori de norma nenhuma, ou a “correta
interpretação da norma”. A fronteira da legalidade é aquela que se impõe pelos
agentes que disputam a interpretação dos textos (e quaisquer outros
instrumentos) e desse modo constituem a regra. Não compreender isso é
fetichizar o direito e inserir no plano místico qualquer tentativa de debate[2].
Assim, neste pequeno texto acerca da
relação entre terceirização e trabalho análogo ao escravo, não será feito
qualquer discurso retórico que aspire prescrever que “isso” ou “aquilo” é legal
ou ilegal. Mesmo a análise da legalidade no mundo real, ou seja, das relações
concretamente estabelecidas entre os agentes de regulação, não fará parte do
escopo do artigo, dentre outras razões, pela conjuntura de sua mutabilidade.
Estamos na iminência de possível
inflexão da regulação da terceirização e do trabalho análogo ao escravo no
Brasil. Quanto a este último, foi promulgada ontem (05/06/2014) emenda à
Constituição que prevê a expropriação de propriedade na qual for flagrada a
exploração de trabalhadores nessas condições. Contudo, empregadores urbanos,
rurais e suas entidades representativas estão tentando aproveitar essa mudança
para regulamentar a emenda alterando o conceito de trabalho análogo ao escravo,
restringindo o crime à coerção individual direta e, com isso absolvendo todas
as formas de exploração típicas da coerção do mercado de trabalho, que são
aquelas próprias do capitalismo[3].
Quanto à terceirização, o Supremo
Tribunal Federal (STF) decidiu reconhecer repercussão geral à decisão que será
tomada em processo sobre o tema[4],
que servirá como referência para todas as ações que tramitam atualmente e que
venham a subir ao Supremo. Desse modo, servirá como precedente fortíssimo à
atuação de todo o Judiciário, demais instituições de regulação do trabalho e,
em especial, às empresas.
Em suma, o STF poderá dar enorme
contribuição à restrição ou flexibilização das fronteiras efetivamente
estabelecidas pelas instituições do Estado, até momento, no tratamento da
terceirização.
Neste momento crítico, o objetivo geral deste
breve artigo é apresentar algumas características da natureza dos fenômenos a
partir da relação entre eles, seja lá qual for a regulamentação que o Estado
estabeleça sobre eles.
Assim busca-se contribuir com algumas
luzes sobre o que, de fato, são terceirização e trabalho análogo ao escravo,
para que se tenha consciência sobre o que se está atuando, seja combatendo,
consentindo ou estimulando.
O objetivo específico do artigo é apresentar
subsídios à pergunta do seu título: a relação entre trabalho análogo ao escravo
e terceirização é contingencial? O principal argumento defendido, com base em uma
série de indicadores, é que existe forte relação entre a ocorrência de trabalho
análogo ao escravo e a terceirização. Isso porque o trabalho análogo ao escravo
no Brasil é limite da relação de emprego, e a terceirização é uma estratégia de
gestão do trabalho que objetiva justamente driblar esses limites (seja ele representado
por sindicato, direito do trabalho, etc.) impostos ao assalariamento. É essa
relação que explica a ampla prevalência de trabalhadores terceirizados entre
aqueles submetidos s condições análogas à de escravos.
A análise do texto é baseada no universo
dos relatórios de ações de combate ao trabalho análogo ao escravo do Ministério
do Trabalho. Trata-se, portanto, da totalidade dos resgates ocorridos no país
nos anos investigados, quais sejam: 2010, 2011, 2012 e 2013. Além dos dados
agregados, foi observada e incidência da terceirização à luz da condição de
formalização dos trabalhadores e por atividade econômica selecionada.
[1] Doutor em Ciências Sociais
(UFBA), pós-doutorando em Economia (UNICAMP), Pesquisador de Centro de Estudos
Sindicais e Economia do Trabalho (CESIT) da UNICAMP, auditor fiscal do
Ministério do Trabalho, integrante do grupo de pesquisa “Indicadores de
Regulação do Emprego”, sendo o presente texto desenvolvido no curso das
atividades do grupo (http://indicadoresderegulacaodoemprego.blogspot.com.br).
Agradeço às críticas de Dari Krein, Carla Gabrieli,
Ilan Fonseca, Renata Dutra. Assumo integralmente a responsabilidade pelo
conteúdo e eventuais inconsistências do texto
[2] Uma análise sobre o tema consta
no capítulo 3 de FILGUEIRAS, Vitor. Estado e direito do trabalho no Brasil:
regulação do emprego entre 1988 e 2008. Salvador, UFBA, 2012. Disponível em:
http://indicadoresderegulacaodoemprego.blogspot.com.br
[3] Ver, por
exemplo: “Ruralistas tentam descaracterizar o que é
trabalho escravo” (obtido em http://www.trabalhoescravo.org.br/noticia/70.),
dentre muitas fontes existentes. Sobre a dinâmica de disputa pela regulação, ver:
FILGUEIRAS, Vitor. Trabalho análogo ao
escravo e o limite da relação de emprego: natureza e disputa na regulação
do Estado. Brasiliana – Journal for Brazilian Studies. Vol. 2, n.2, Out. 2013.
[4] O
Ministro Luiz Fux deu provimento ao recurso patronal de embargos declaratórios em
recurso extraordinário com agravo ARE 713211 MG (STF) -,
integralmente acompanhado pelos demais componentes da Turma, para reconhecer
repercussão geral ao tema da terceirização de atividade-fim, no dia 1º de abril
de 2014.
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