Vitor Filgueiras *
Renata Queiroz Dutra**
INTRODUÇÃO
O Supremo Tribunal Federal tem assumido uma postura de protagonismo em relação ao julgamento de uma questão fundamental concernente à regulação das relações de trabalho no Brasil hoje: a terceirização.
Em 2011, o STF, no julgamento relativamente rápido[1] da ADC 16/DF, disciplinou a responsabilidade da Administração Pública pela terceirização de serviços contratados nos termos da Lei nº 8.666/93. O fez por meio de análise apartada dos valores sociais do trabalho, que culminou por isentar de responsabilidade, como regra, os entes públicos tomadores de serviços, estabelecendo que a quitação dos haveres trabalhistas deve ser resolvida, prioritariamente, entre os trabalhadores terceirizados e as pessoas jurídicas interpostas (empresas prestadoras de serviços).
Recentemente, em decisão que alarmou o movimento sindical, os agentes de regulação institucional e os estudiosos do mundo do trabalho, a Corte Constitucional reconheceu a repercussão geral da licitude da terceirização de atividade-fim, à luz da liberdade de contratar inserta no art. 5º, II, da Constituição Federal (ARE 713.211/MG, relatoria do Ministro Luiz Fux). A possibilidade de romper com o até então estável entendimento do Tribunal Superior do Trabalho sobre a matéria, consolidado nos termos da Súmula nº 331 daquele Tribunal trabalhista, aponta para uma abertura para a terceirização maior até do que a intentada pelo patronato pela via legislativa (conferir, por exemplo, os termos do PL 4330).
O setor de telecomunicações não ficou de fora dessa investida empresarial sobre a Suprema Corte: foi reconhecida no plenário virtual a Repercussão Geral nº 739[2], no bojo ARE 791932, de relatoria do Min. Teori Zavaski, por 9 dos 11 Ministros do STF.
Importante observar que dos 9 Ministros que votaram pela repercussão geral, 8 entenderam que havia questão constitucional quanto à matéria. Apenas a Ministra Rosa Weber reconheceu a repercussão geral para pontuar que não havia questão constitucional em relação ao tema.
Os Ministros entenderam que há repercussão geral na alegação recursal de que, quando o Tribunal Superior do Trabalho reconhece a ilicitude da terceirização de atividade de call center pelas empresas de telecomunicações, deixa de aplicar o art. 94, II, da Lei nº 9.472/97 (Lei Geral de Telecomunicações – LGT), de modo que, ainda que não tenha declarado a inconstitucionalidade desse dispositivo legal, viola a cláusula de reserva de plenário (art. 97 da Constituição Federal [3]) .
Embora aparente que a questão recursal reveste-se de contornos meramente formais, que podem dar ensejo a uma mera determinação do Supremo no sentido de que o TST submeta a questão ao seu Plenário, para sanar o problema do quórum exigido pelo art. 97 da Constituição Federal, é importante ter em mente que, de acordo com a sistemática processual da repercussão geral hoje em vigor, nada impede que, ao decidir a questão processual à qual se atribuiu repercussão geral, o Supremo prossiga no julgamento para enfrentar a questão de mérito relativa à possibilidade ou não de o art. 94, II, da LGT autorizar a terceirização de atividade-fim por parte das empresas de telecomunicações. O fazendo, a Corte atribuiria repercussão geral ao seu entendimento, vinculando todos os demais órgãos do Judiciário e encerrando a possibilidade de recurso extraordinário sobre o tema.
Assim sendo, a questão adquire relevância para a regulação do trabalho no país: primeiro, pela exceção que representa em relação à regra geral firmada hoje no ordenamento, no sentido de que a terceirização de atividade-fim é ilícita, visto que se caracteriza como intermediação de mão de obra e implica rebaixamento das condições de trabalho [4]. Segundo, pela possibilidade de o Poder Judiciário reconhecer e legitimar a possibilidade de terceirização justamente em um setor em que a estratégia da forma de contratação tem contribuído para provocar a precarização das condições de trabalho e a precariedade das condições de vida dos trabalhadores envolvidos, notadamente no que concerne à sua saúde.
A pergunta, portanto, consiste em compreender porque excepcionar das responsabilidades trabalhistas, a partir de uma leitura ampliativa de um diploma normativo que cuida dos termos da concessão administrativa dos serviços de telecomunicações (e não da disciplina das relações de trabalho), um setor econômico que, apesar de encontrar-se em franco crescimento, tem sacrificado uma massa de trabalhadoras jovens com uma organização do trabalho que impõe intensidade no emprego da força de trabalho, assédio subjetivo e condições físicas ofensivas à saúde. E a porta de entrada e elemento essencial desse processo não tem sido outra que não a terceirização, com seu imediato distanciamento do tomador de serviços das responsabilidades pela condição de trabalho oferecida aos trabalhadores e afastamento do trabalhador das categorias sindicais mais sólidas e representadas pelo sindicato dos empregados das empresas concessionárias dos serviços de telecomunicações.
A disputa entre capital e trabalho se reproduz nas esferas de regulação e, certamente, os interesses envolvidos nesse conflito pressionam e operam na formação do convencimento dos julgadores do STF a respeito do tema. O trânsito que o lobby das grandes empresas do setor de telecomunicações terá nos bastidores do julgamento é previsível. Resta saber o peso que os trabalhadores envolvidos no processo e a perspectiva de esgotamento de sua saúde poderá ter em contrapartida.
Para acessar a íntegra do texto, clique aqui.
_______________________
*Doutor em Ciências Sociais (UFBA), pós-doutorando em Economia (UNICAMP), Pesquisador de Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (CESIT) da UNICAMP, auditor fiscal do Ministério do Trabalho.
**Mestre e Doutoranda em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília. Analista Judiciária do Tribunal Superior do Trabalho.
Ambos os autores integram o grupo de pesquisa “Indicadores de Regulação do Emprego”, sendo o presente texto desenvolvido no curso das atividades do grupo (http://indicadoresderegulacaodoemprego.blogspot.com.br). Agradecemos a Daniel Soeiro Freitas pelo diálogo a respeito das ideias suscitadas no texto, assumindo integral responsabilidade por seu conteúdo.
[1] Basta observar que a referida ação declaratória de constitucionalidade fora proposta em 2007, ao passo que, por exemplo, a ADI nº 1625, a respeito da denúncia pelo Estado Brasileiro da Convenção nº 158 da OIT, que repele a dispensa imotivada, a qual foi ajuizada em 1997 e ainda encontra-se pendente de conclusão do julgamento.
[2] Decisão proferida em sede de recurso extraordinário interposto contra o acórdão proferido pela 1ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho, em voto de relatoria do Ministro Hugo Carlos Scheuermann no processo nº TST-AIRR-27-97.2012.5.03.0019, em que foi confirmada decisão do 3º TRT (Minas Gerais), que considerou ilícita a terceirização de call center no setor de telecomunicações e reconhece o vínculo empregatício diretamente com a empresa tomadora de serviços.
[3] Dispõe o art. 97 da Constituição: “Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público".
[4] Dentre os tantos indicadores que demonstram a relação entre terceirização de atividade fim e precarização do trabalho, ver: FILGUEIRAS, Vitor Araújo. Terceirização e trabalho análogo ao escravo:
coincidência? Disponível em: https://indicadoresdeemprego.files.wordpress.com/2013/12/tercerizac3a7c3a3o-e-trabalho-anc3a1logo-ao-escravo1.pdf
Nenhum comentário:
Postar um comentário