Querem “suicidar”
mais um trabalhador brasileiro
O homem na foto abaixo, posicionado no lado esquerdo
da imagem, desde sábado (30 de março) não está mais entre nós.
Fábio Hamilton da Cruz tinha 23 anos e trabalhava na
obra da Arena Corinthians, em São Paulo. Ele era formalmente contratado pela
pessoa jurídica WDS Construções. A tomadora de serviços era a pessoa jurídica
FAST Engenharia, por sua vez contratada pela Odebrecht.
Ele morreu há quatro dias, quando caiu em uma das
diversas aberturas no piso que podem ser visualizadas na foto abaixo, nas
atividades de montagem das arquibancadas provisórias do estádio.
Foto obtida em: http://globoesporte.globo.com/futebol/times/corinthians/noticia/2014/04/fotos-mostram-operario-pouco-antes-do-acidente-na-arena-corinthians.html
Logo após a sua morte, os diversos meios de
comunicação divulgaram o fato, apresentando como principal questão a ser
elucidada a eventual utilização dos equipamentos de proteção individual pelo
operário, especificamente o cinto de segurança.
Essa abordagem é uma aberração múltipla, pois
inverte completamente o nexo de causalidade e de responsabilidade em relação ao
acidente, e pode ser sintetizada na fala do delegado da polícia civil
responsável pelo caso:
– Em oitivas informais que tive com
funcionários que estavam ao lado da vítima, a primeira impressão foi de que a
vítima negligenciou o uso de um equipamento de segurança – relatou o delegado.
De acordo com os relatos, Fábio teria dispensado a
utilização do cabo vida, onde funcionários se prendem para evitar quedas de
grandes alturas. O funcionário afirmou aos colegas que faria um serviço rápido
e simples, e que não haveria necessidade de prender seu cinto de segurança ao
cabo. Durante o percurso, desequilibrou-se e caiu de uma altura que causa
divergência - oito metros, de acordo com a Fast Engenharia, de nove a dez,
indicado pelo Boletim de Ocorrência, ou 15 metros, na estimativa do Corpo de
Bombeiros.
Ao que tudo indica, não foi uma ausência de
equipamento. Foi uma negligência da própria vítima, a maior prejudicada por
isso. É um tipo de trabalho em que o excesso de confiança causa eventos como
esse. É um fato realmente lamentável – destacou Rafael Pavarina.
A fala atribuída ao
delegado, mas que não advém de uma visão particular sobre segurança do trabalho,
pelo contrário, está espraiada em nossa sociedade, merece algumas
considerações:
Primeiro, e menos
importante enquanto fator contribuinte para a morte de Fábio: a responsabilidade,
não apenas por fornecer, mas também por exigir o uso de equipamentos de
proteção é do empregador. Essa previsão é reiteradamente expressa no texto da
legislação trabalhista, cuja leitura pode ser: “use, mas não mate”. Assim,
mesmo que no caso concreto a única alternativa de sistema de proteção fosse o
uso do cinto de segurança acoplado à linha de vida por talabarte, a empresa tinha
obrigação de manter um preposto seu para fiscalizar e dirigir a realização segura
das atividades, ainda mais dado o evidente risco de queda.
Muito mais importante,
contudo, é esclarecer que a utilização de equipamentos de proteção individual
deve ocorrer apenas em último caso (ou complementarmente), dada sua ineficiência
decorrente de um conjunto de fatores, como o controle do processo produtivo por
outrem, controle da exposição, número de ações envolvidas, probabilidade e cognição
(só para constar, a foto permite observar, dentre outros, pontos de ancoragem da
linha de vida distantes, que engendram grande flecha e provável ineficácia do
mecanismo). Assim, o segundo ponto a ser enfatizado é que os riscos de
acidentes devem ser eliminados pela empresa, ou, sendo inviável a sua
eliminação, o empregador deve adotar medida de proteção coletiva, muito mais eficaz
do que equipamento de proteção individual. Isso também está previsto nas normas
trabalhista e também é responsabilidade da empresa.
Como a foto acima demonstra,
não havia nenhuma proteção coletiva no local de trabalho onde Fábio laborava,
tanto nas periferias, quanto nas aberturas no piso. Não por acaso, os auditores
que foram ao local do acidente fizeram o óbvio, qual seja: embargaram as
atividades para que seja adotada proteção coletiva na atividade com risco de
queda (http://reporterbrasil.org.br/2014/04/fiscais-do-trabalho-interditam-montagem-de-arquibancadas-do-itaquerao/).
Se houvesse proteção coletiva na montagem da arquibancada, constituída de
dispositivos projetados e compatíveis com o esforço exercido por um corpo em
queda (rígidos ou em material suficientemente resistente, a depender das várias
alternativas possíveis), Fábio estaria vivo, com ou sem cinto.
Terceiro: a
repercussão da morte desse trabalhador é mais uma evidência empírica, dentre
milhares passíveis de detecção todos os dias, de que existe um cruel senso
comum da individualização da saúde e segurança do trabalho no Brasil. Esse
senso comum relaciona segurança do trabalho com equipamento de proteção
individual (capacete, cinto, etc.), quando as proteções essenciais à vida dos
trabalhadores são coletivas (por exemplo, no caso de risco de queda, fechamento
das aberturas no piso e proteção das periferias das obras).
Esse senso comum é
aspecto do tipo de hegemonia capitalista que se exerce no Brasil. Muito longe
de ser resultado de uma “cultura” ou de ignorância, ele atende aos interesses
empresariais, porque: (1) imputa ao trabalhador a responsabilidade (mesmo que o
texto da legislação diga que a responsabilidade por cumprir a norma é do
empregador) e o culpa pelo próprio acidente, ao passo que (2) se exime dos
custos que precisaria ter para adotar medidas de proteção coletiva (ou seja,
continua sem adotar as medidas corretas de proteção, além de socializar as
despesas do infortúnio com toda a sociedade por meio do SUS e do INSS),
mantendo as mesmas condições que engendraram os acidentes, que assim se perpetuam,
num círculo vicioso de mortes.
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