Navio
negreiro do capitalismo contemporâneo não precisa de correntes
Na última terça-feira
(01/04/2014) foram resgatados onze trabalhadores em condição análoga à de
escravos em um cruzeiro de luxo que passava por Salvador. A notícia foi
divulgada em diversos meios de comunicação[1],
inclusive na grande mídia nacional[2] e
internacional[3].
Muitos comentários dos
leitores dessas notícias corroboram o cenário geral da disputa em torno do
conceito de trabalho análogo ao escravo no Brasil, da compreensão da natureza
das relações de trabalho na nossa sociedade e dos limites à exploração do
trabalho no bojo da produção da riqueza privadamente apropriada.
Provavelmente, a grande
repercussão do resgate no cruzeiro de luxo está relacionada ao fato de ter sido
o primeiro realizado nesse setor, associado ao perfil dos trabalhadores resgatados.
Eles são jovens, mas não necessariamente pobres, e têm participação no ensino
formal superior à média nacional.
Nos comentários dos
leitores anexados às notícias sobre a fiscalização surgem afirmações condenando
a ação do Estado: “eles não estavam presos”, “foram porque queriam” e “iriam
ganhar bem”, são alguns dos conteúdos presentes.
De fato, os
trabalhadores resgatados não estavam presos, nem amarrados a correntes no navio.
Contudo, isso não diminui a gravidade da situação constatada pelas instituições
do Estado lideradas pela fiscalização do trabalho. Pelo contrário, é um quadro
tão cruel quanto aquele vivido pelos escravos do século XIX, cujo
consentimento, longe de atenuante, é agravante para o disfarce e legitimação
dessa forma de exploração.
É preciso entender o
que é o trabalho análogo ao escravo (e, por conseguinte, o que as instituições
de vigilância do direito do trabalho fizeram) para ter a dimensão do que esse
resgate significa para regulação do mercado de trabalho e qualquer pretensão
civilizatória em nosso país.
A produção da riqueza
social no Brasil atual se assenta em forma de organização do trabalho distinta daquela
do período escravocrata pré-1988. Naquele tempo era necessária a coerção direta
de um individuo sobre outro para extração do excedente de riqueza, processo
garantido pelo Estado por meio da propriedade de um indivíduo por outro.
Há mais de um século, a
mobilização laboral dos indivíduos despossuídos, em regra, é viabilizada pela
coerção que o mercado de trabalho exerce sobre eles, garantida pelo Estado por
meio de propriedade privada dos meios de produção.
O que une os escravos
juridicamente constituídos no Brasil e os trabalhadores assalariados em
situação análoga à de escravos? A identidade se dá pela natureza e objetivos da
relação que os subordina. Deixada ao curso de sua natureza histórica, a relação
tende à exploração do trabalho sem limite prévio, em todos os aspectos, podendo
incluir a eliminação física do trabalhador. Apenas para ilustrar, a professora Maria
Aparecida Silva demonstrou como a força de trabalho de cortadores de cana no
Brasil tem vida útil menor do que na época da utilização do trabalho escravo
tradicional, com registro de diversos casos de morte por exaustão decorrentes
do excesso de trabalho.
No caso do navio de
cruzeiro onde foram resgatados os trabalhadores na última semana, foram
registrados regimes de trabalho que chegavam a duzentos dias seguidos, sem
nenhum dia de descanso. Não bastasse trabalharem todos os dias, os empregados
tinham como jornada diária mínima 11 horas de trabalho, que frequentemente
atingiam 16 horas por dia.
Não parece ser
coincidência que houve ao menos três mortes e um desaparecimento de
trabalhadores brasileiros em cruzeiros nos últimos anos[4],
sendo que em um dos casos foi efetuado laudo pela inspeção do trabalho, que
concluiu pelo nexo entre o infortúnio e o trabalho, dentre outros, pela fadiga
da empregada após ter trabalhado sem nenhum dia de folga por 193 dias seguidos,
com uma jornada diária superior a 11 horas.
Sem entrar no mérito
das humilhações e demais violações aos direitos humanos às quais estavam
expostos os trabalhadores no cruzeiro, estamos tratando de consumo físico destruidor
do próprio empregado no processo de produção e apropriação da riqueza social.
Na nossa sociedade, em
regra, as pessoas não precisam ser coagidas diretamente por determinado
indivíduo para laborar, pois, com exceção dos proprietários, o restante da população
é obrigado a vender sua força de trabalho para se reproduzir física e
socialmente. Por isso, os trabalhadores contemporâneos, mesmo destinatários de
liberdades individuais, podem ter que se submeter a qualquer tipo de condição
de trabalho, eventualmente semelhantes ou piores do que aquelas vividas pelos
escravos típicos. Essa submissão possui requinte de crueldade, pois, dadas a
liberdade individual do proprietário da força de trabalho e sua necessidade de
venda compulsória, há normalmente o consentimento imediato do explorado à sua
situação.
Ocorre que, ao
contrário do século XIX, hoje o Estado é impelido a prescrever e tentar
implementar limites à exploração do trabalho. No Brasil, além de limites
internos à relação de emprego (como salário mínimo, registro do empregado),
existem limites à existência da própria relação. Esse limite essencial é
justamente o conceito de trabalho análogo ao escravo. É um limite à exploração
do trabalho assalariado que, se ultrapassado, ou seja, se as condições de
trabalho verificadas se tornam semelhantes à dos escravos, o Estado não admite a
relação e a desconstitui (rescinde o contrato). É nesses termos que ocorre o resgate de
trabalhadores, como no caso do cruzeiro de luxo.
Esse limite é previsto
no código penal, artigo 149, que tipifica as ações que caracterizam o trabalho
análogo ao escravo, as quais podem ser encontradas separadamente ou até
concomitantemente numa situação concreta. Dentre eles estão: submeter
trabalhadores a condições degradantes e impor jornadas exaustivas de trabalho
(como foi constatado no cruzeiro de luxo), situações que não dependem
necessariamente da coerção individual direta sobre o trabalhador, constituindo
assim limites à coerção do mercado de trabalho, típica da nossa sociedade.
Trata-se, portanto, de um
limite mínimo à civilidade do tipo de sociedade instaurada em nosso país.
Segue abaixo link para texto publicado sobre o tema na revista Brasiliana.
[4] Fabiana Pasquarelli, Camilla
Peixoto Bandeira, Thatila Soares morreram, Laís Santiago está desaparecida.
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