quarta-feira, 2 de abril de 2014


Querem “suicidar” mais um trabalhador brasileiro

O homem na foto abaixo, posicionado no lado esquerdo da imagem, desde sábado (30 de março) não está mais entre nós.
Fábio Hamilton da Cruz tinha 23 anos e trabalhava na obra da Arena Corinthians, em São Paulo. Ele era formalmente contratado pela pessoa jurídica WDS Construções. A tomadora de serviços era a pessoa jurídica FAST Engenharia, por sua vez contratada pela Odebrecht.
Ele morreu há quatro dias, quando caiu em uma das diversas aberturas no piso que podem ser visualizadas na foto abaixo, nas atividades de montagem das arquibancadas provisórias do estádio.

Logo após a sua morte, os diversos meios de comunicação divulgaram o fato, apresentando como principal questão a ser elucidada a eventual utilização dos equipamentos de proteção individual pelo operário, especificamente o cinto de segurança.
Essa abordagem é uma aberração múltipla, pois inverte completamente o nexo de causalidade e de responsabilidade em relação ao acidente, e pode ser sintetizada na fala do delegado da polícia civil responsável pelo caso:

– Em oitivas informais que tive com funcionários que estavam ao lado da vítima, a primeira impressão foi de que a vítima negligenciou o uso de um equipamento de segurança – relatou o delegado.
De acordo com os relatos, Fábio teria dispensado a utilização do cabo vida, onde funcionários se prendem para evitar quedas de grandes alturas. O funcionário afirmou aos colegas que faria um serviço rápido e simples, e que não haveria necessidade de prender seu cinto de segurança ao cabo. Durante o percurso, desequilibrou-se e caiu de uma altura que causa divergência - oito metros, de acordo com a Fast Engenharia, de nove a dez, indicado pelo Boletim de Ocorrência, ou 15 metros, na estimativa do Corpo de Bombeiros.
Ao que tudo indica, não foi uma ausência de equipamento. Foi uma negligência da própria vítima, a maior prejudicada por isso. É um tipo de trabalho em que o excesso de confiança causa eventos como esse. É um fato realmente lamentável – destacou Rafael Pavarina.

A fala atribuída ao delegado, mas que não advém de uma visão particular sobre segurança do trabalho, pelo contrário, está espraiada em nossa sociedade, merece algumas considerações:
Primeiro, e menos importante enquanto fator contribuinte para a morte de Fábio: a responsabilidade, não apenas por fornecer, mas também por exigir o uso de equipamentos de proteção é do empregador. Essa previsão é reiteradamente expressa no texto da legislação trabalhista, cuja leitura pode ser: “use, mas não mate”. Assim, mesmo que no caso concreto a única alternativa de sistema de proteção fosse o uso do cinto de segurança acoplado à linha de vida por talabarte, a empresa tinha obrigação de manter um preposto seu para fiscalizar e dirigir a realização segura das atividades, ainda mais dado o evidente risco de queda.
Muito mais importante, contudo, é esclarecer que a utilização de equipamentos de proteção individual deve ocorrer apenas em último caso (ou complementarmente), dada sua ineficiência decorrente de um conjunto de fatores, como o controle do processo produtivo por outrem, controle da exposição, número de ações envolvidas, probabilidade e cognição (só para constar, a foto permite observar, dentre outros, pontos de ancoragem da linha de vida distantes, que engendram grande flecha e provável ineficácia do mecanismo). Assim, o segundo ponto a ser enfatizado é que os riscos de acidentes devem ser eliminados pela empresa, ou, sendo inviável a sua eliminação, o empregador deve adotar medida de proteção coletiva, muito mais eficaz do que equipamento de proteção individual. Isso também está previsto nas normas trabalhista e também é responsabilidade da empresa.
Como a foto acima demonstra, não havia nenhuma proteção coletiva no local de trabalho onde Fábio laborava, tanto nas periferias, quanto nas aberturas no piso. Não por acaso, os auditores que foram ao local do acidente fizeram o óbvio, qual seja: embargaram as atividades para que seja adotada proteção coletiva na atividade com risco de queda (http://reporterbrasil.org.br/2014/04/fiscais-do-trabalho-interditam-montagem-de-arquibancadas-do-itaquerao/). Se houvesse proteção coletiva na montagem da arquibancada, constituída de dispositivos projetados e compatíveis com o esforço exercido por um corpo em queda (rígidos ou em material suficientemente resistente, a depender das várias alternativas possíveis), Fábio estaria vivo, com ou sem cinto.
Terceiro: a repercussão da morte desse trabalhador é mais uma evidência empírica, dentre milhares passíveis de detecção todos os dias, de que existe um cruel senso comum da individualização da saúde e segurança do trabalho no Brasil. Esse senso comum relaciona segurança do trabalho com equipamento de proteção individual (capacete, cinto, etc.), quando as proteções essenciais à vida dos trabalhadores são coletivas (por exemplo, no caso de risco de queda, fechamento das aberturas no piso e proteção das periferias das obras).

Esse senso comum é aspecto do tipo de hegemonia capitalista que se exerce no Brasil. Muito longe de ser resultado de uma “cultura” ou de ignorância, ele atende aos interesses empresariais, porque: (1) imputa ao trabalhador a responsabilidade (mesmo que o texto da legislação diga que a responsabilidade por cumprir a norma é do empregador) e o culpa pelo próprio acidente, ao passo que (2) se exime dos custos que precisaria ter para adotar medidas de proteção coletiva (ou seja, continua sem adotar as medidas corretas de proteção, além de socializar as despesas do infortúnio com toda a sociedade por meio do SUS e do INSS), mantendo as mesmas condições que engendraram os acidentes, que assim se perpetuam, num círculo vicioso de mortes.

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