segunda-feira, 7 de abril de 2014


Navio negreiro do capitalismo contemporâneo não precisa de correntes
Na última terça-feira (01/04/2014) foram resgatados onze trabalhadores em condição análoga à de escravos em um cruzeiro de luxo que passava por Salvador. A notícia foi divulgada em diversos meios de comunicação[1], inclusive na grande mídia nacional[2] e internacional[3].
Muitos comentários dos leitores dessas notícias corroboram o cenário geral da disputa em torno do conceito de trabalho análogo ao escravo no Brasil, da compreensão da natureza das relações de trabalho na nossa sociedade e dos limites à exploração do trabalho no bojo da produção da riqueza privadamente apropriada.
Provavelmente, a grande repercussão do resgate no cruzeiro de luxo está relacionada ao fato de ter sido o primeiro realizado nesse setor, associado ao perfil dos trabalhadores resgatados. Eles são jovens, mas não necessariamente pobres, e têm participação no ensino formal superior à média nacional.
Nos comentários dos leitores anexados às notícias sobre a fiscalização surgem afirmações condenando a ação do Estado: “eles não estavam presos”, “foram porque queriam” e “iriam ganhar bem”, são alguns dos conteúdos presentes.
De fato, os trabalhadores resgatados não estavam presos, nem amarrados a correntes no navio. Contudo, isso não diminui a gravidade da situação constatada pelas instituições do Estado lideradas pela fiscalização do trabalho. Pelo contrário, é um quadro tão cruel quanto aquele vivido pelos escravos do século XIX, cujo consentimento, longe de atenuante, é agravante para o disfarce e legitimação dessa forma de exploração.
É preciso entender o que é o trabalho análogo ao escravo (e, por conseguinte, o que as instituições de vigilância do direito do trabalho fizeram) para ter a dimensão do que esse resgate significa para regulação do mercado de trabalho e qualquer pretensão civilizatória em nosso país.
A produção da riqueza social no Brasil atual se assenta em forma de organização do trabalho distinta daquela do período escravocrata pré-1988. Naquele tempo era necessária a coerção direta de um individuo sobre outro para extração do excedente de riqueza, processo garantido pelo Estado por meio da propriedade de um indivíduo por outro.
Há mais de um século, a mobilização laboral dos indivíduos despossuídos, em regra, é viabilizada pela coerção que o mercado de trabalho exerce sobre eles, garantida pelo Estado por meio de propriedade privada dos meios de produção.
O que une os escravos juridicamente constituídos no Brasil e os trabalhadores assalariados em situação análoga à de escravos? A identidade se dá pela natureza e objetivos da relação que os subordina. Deixada ao curso de sua natureza histórica, a relação tende à exploração do trabalho sem limite prévio, em todos os aspectos, podendo incluir a eliminação física do trabalhador. Apenas para ilustrar, a professora Maria Aparecida Silva demonstrou como a força de trabalho de cortadores de cana no Brasil tem vida útil menor do que na época da utilização do trabalho escravo tradicional, com registro de diversos casos de morte por exaustão decorrentes do excesso de trabalho.
No caso do navio de cruzeiro onde foram resgatados os trabalhadores na última semana, foram registrados regimes de trabalho que chegavam a duzentos dias seguidos, sem nenhum dia de descanso. Não bastasse trabalharem todos os dias, os empregados tinham como jornada diária mínima 11 horas de trabalho, que frequentemente atingiam 16 horas por dia.
Não parece ser coincidência que houve ao menos três mortes e um desaparecimento de trabalhadores brasileiros em cruzeiros nos últimos anos[4], sendo que em um dos casos foi efetuado laudo pela inspeção do trabalho, que concluiu pelo nexo entre o infortúnio e o trabalho, dentre outros, pela fadiga da empregada após ter trabalhado sem nenhum dia de folga por 193 dias seguidos, com uma jornada diária superior a 11 horas.
Sem entrar no mérito das humilhações e demais violações aos direitos humanos às quais estavam expostos os trabalhadores no cruzeiro, estamos tratando de consumo físico destruidor do próprio empregado no processo de produção e apropriação da riqueza social.
Na nossa sociedade, em regra, as pessoas não precisam ser coagidas diretamente por determinado indivíduo para laborar, pois, com exceção dos proprietários, o restante da população é obrigado a vender sua força de trabalho para se reproduzir física e socialmente. Por isso, os trabalhadores contemporâneos, mesmo destinatários de liberdades individuais, podem ter que se submeter a qualquer tipo de condição de trabalho, eventualmente semelhantes ou piores do que aquelas vividas pelos escravos típicos. Essa submissão possui requinte de crueldade, pois, dadas a liberdade individual do proprietário da força de trabalho e sua necessidade de venda compulsória, há normalmente o consentimento imediato do explorado à sua situação.
Ocorre que, ao contrário do século XIX, hoje o Estado é impelido a prescrever e tentar implementar limites à exploração do trabalho. No Brasil, além de limites internos à relação de emprego (como salário mínimo, registro do empregado), existem limites à existência da própria relação. Esse limite essencial é justamente o conceito de trabalho análogo ao escravo. É um limite à exploração do trabalho assalariado que, se ultrapassado, ou seja, se as condições de trabalho verificadas se tornam semelhantes à dos escravos, o Estado não admite a relação e a desconstitui (rescinde o contrato).  É nesses termos que ocorre o resgate de trabalhadores, como no caso do cruzeiro de luxo.
Esse limite é previsto no código penal, artigo 149, que tipifica as ações que caracterizam o trabalho análogo ao escravo, as quais podem ser encontradas separadamente ou até concomitantemente numa situação concreta. Dentre eles estão: submeter trabalhadores a condições degradantes e impor jornadas exaustivas de trabalho (como foi constatado no cruzeiro de luxo), situações que não dependem necessariamente da coerção individual direta sobre o trabalhador, constituindo assim limites à coerção do mercado de trabalho, típica da nossa sociedade.
Trata-se, portanto, de um limite mínimo à civilidade do tipo de sociedade instaurada em nosso país.

Segue abaixo link para texto publicado sobre o tema na revista Brasiliana.


quarta-feira, 2 de abril de 2014


Querem “suicidar” mais um trabalhador brasileiro

O homem na foto abaixo, posicionado no lado esquerdo da imagem, desde sábado (30 de março) não está mais entre nós.
Fábio Hamilton da Cruz tinha 23 anos e trabalhava na obra da Arena Corinthians, em São Paulo. Ele era formalmente contratado pela pessoa jurídica WDS Construções. A tomadora de serviços era a pessoa jurídica FAST Engenharia, por sua vez contratada pela Odebrecht.
Ele morreu há quatro dias, quando caiu em uma das diversas aberturas no piso que podem ser visualizadas na foto abaixo, nas atividades de montagem das arquibancadas provisórias do estádio.

Logo após a sua morte, os diversos meios de comunicação divulgaram o fato, apresentando como principal questão a ser elucidada a eventual utilização dos equipamentos de proteção individual pelo operário, especificamente o cinto de segurança.
Essa abordagem é uma aberração múltipla, pois inverte completamente o nexo de causalidade e de responsabilidade em relação ao acidente, e pode ser sintetizada na fala do delegado da polícia civil responsável pelo caso:

– Em oitivas informais que tive com funcionários que estavam ao lado da vítima, a primeira impressão foi de que a vítima negligenciou o uso de um equipamento de segurança – relatou o delegado.
De acordo com os relatos, Fábio teria dispensado a utilização do cabo vida, onde funcionários se prendem para evitar quedas de grandes alturas. O funcionário afirmou aos colegas que faria um serviço rápido e simples, e que não haveria necessidade de prender seu cinto de segurança ao cabo. Durante o percurso, desequilibrou-se e caiu de uma altura que causa divergência - oito metros, de acordo com a Fast Engenharia, de nove a dez, indicado pelo Boletim de Ocorrência, ou 15 metros, na estimativa do Corpo de Bombeiros.
Ao que tudo indica, não foi uma ausência de equipamento. Foi uma negligência da própria vítima, a maior prejudicada por isso. É um tipo de trabalho em que o excesso de confiança causa eventos como esse. É um fato realmente lamentável – destacou Rafael Pavarina.

A fala atribuída ao delegado, mas que não advém de uma visão particular sobre segurança do trabalho, pelo contrário, está espraiada em nossa sociedade, merece algumas considerações:
Primeiro, e menos importante enquanto fator contribuinte para a morte de Fábio: a responsabilidade, não apenas por fornecer, mas também por exigir o uso de equipamentos de proteção é do empregador. Essa previsão é reiteradamente expressa no texto da legislação trabalhista, cuja leitura pode ser: “use, mas não mate”. Assim, mesmo que no caso concreto a única alternativa de sistema de proteção fosse o uso do cinto de segurança acoplado à linha de vida por talabarte, a empresa tinha obrigação de manter um preposto seu para fiscalizar e dirigir a realização segura das atividades, ainda mais dado o evidente risco de queda.
Muito mais importante, contudo, é esclarecer que a utilização de equipamentos de proteção individual deve ocorrer apenas em último caso (ou complementarmente), dada sua ineficiência decorrente de um conjunto de fatores, como o controle do processo produtivo por outrem, controle da exposição, número de ações envolvidas, probabilidade e cognição (só para constar, a foto permite observar, dentre outros, pontos de ancoragem da linha de vida distantes, que engendram grande flecha e provável ineficácia do mecanismo). Assim, o segundo ponto a ser enfatizado é que os riscos de acidentes devem ser eliminados pela empresa, ou, sendo inviável a sua eliminação, o empregador deve adotar medida de proteção coletiva, muito mais eficaz do que equipamento de proteção individual. Isso também está previsto nas normas trabalhista e também é responsabilidade da empresa.
Como a foto acima demonstra, não havia nenhuma proteção coletiva no local de trabalho onde Fábio laborava, tanto nas periferias, quanto nas aberturas no piso. Não por acaso, os auditores que foram ao local do acidente fizeram o óbvio, qual seja: embargaram as atividades para que seja adotada proteção coletiva na atividade com risco de queda (http://reporterbrasil.org.br/2014/04/fiscais-do-trabalho-interditam-montagem-de-arquibancadas-do-itaquerao/). Se houvesse proteção coletiva na montagem da arquibancada, constituída de dispositivos projetados e compatíveis com o esforço exercido por um corpo em queda (rígidos ou em material suficientemente resistente, a depender das várias alternativas possíveis), Fábio estaria vivo, com ou sem cinto.
Terceiro: a repercussão da morte desse trabalhador é mais uma evidência empírica, dentre milhares passíveis de detecção todos os dias, de que existe um cruel senso comum da individualização da saúde e segurança do trabalho no Brasil. Esse senso comum relaciona segurança do trabalho com equipamento de proteção individual (capacete, cinto, etc.), quando as proteções essenciais à vida dos trabalhadores são coletivas (por exemplo, no caso de risco de queda, fechamento das aberturas no piso e proteção das periferias das obras).

Esse senso comum é aspecto do tipo de hegemonia capitalista que se exerce no Brasil. Muito longe de ser resultado de uma “cultura” ou de ignorância, ele atende aos interesses empresariais, porque: (1) imputa ao trabalhador a responsabilidade (mesmo que o texto da legislação diga que a responsabilidade por cumprir a norma é do empregador) e o culpa pelo próprio acidente, ao passo que (2) se exime dos custos que precisaria ter para adotar medidas de proteção coletiva (ou seja, continua sem adotar as medidas corretas de proteção, além de socializar as despesas do infortúnio com toda a sociedade por meio do SUS e do INSS), mantendo as mesmas condições que engendraram os acidentes, que assim se perpetuam, num círculo vicioso de mortes.